As crianças tendem a se dividir em dois grupos, as muito tolas, ou as muito espertas. Eu era definitivamente da turma das tolas.
E ele? Ele era o rei dos espertos. O líder dos malandros. Era falante, firme, forte e, principalmente cruel. Cruel e vil, como só a infância nos permite ser impunemente.
Seu nome era Caio e fisicamente ele era a imagem, e o símbolo da força. Enquanto os outros meninos ainda eram magricelas e franzinos, ele já era grande, gordo, tinha cabelos cor de fogo e uma voz tão grossa e perturbadora que, a mim, soava como um trovão assustador.
Eu era uma menina feia, magra e pequena com grandes óculos fundos de garrafas, e para piorar, herdei da minha família portuguesa genes fortes de muitos pêlos. Tinha uma sobrancelha espessa e, ainda menina, nascia em mim o que hoje chamamos delicadamente de buço, mas, naquela época, como algozes de minha infância, os meninos bradavam a quatro ventos que eu tinha bigode.
Era quase que um ritual. Eu chegava à escola e ficava quieta, tentando ser invisível, tentando que não me notassem porque essa é a alegria de uma criança tímida: não ser notada. Guardava meu material, apontava o lápis vagarosamente, ajeitava meus óculos e limpava o nariz que sempre teimava em pingar. Era como uma autista nessa minha rotina, quando não via o mundo ao redor, porque acreditava que assim o mundo também não me notaria.
Mas havia sempre um momento de falha. Uma pequena escapulida, uma fração de segundo em que o mundo me chamava atenção, talvez por um papel de carta, talvez por uma música ou por uma professora, mas quanto eu o notava o mundo também me via, e, assim, baixada a cortina invisível que nos separava, estava armado o nosso conflito. Bastava que eu relaxasse e fosse notar uma troca de figurinhas, ou admirar um novo papel de carta, qualquer interação e Caio me notava. Daí por diante, iniciava o meu martírio: Como que para me punir por fazer parte do mundo ao qual eu não pertencia ele iniciava sua tortura diária, com um prazer que só os grandes torturadores devem conhecer. Começava com um sorriso cínico, apontava pra mim e falava para um amigo “Olha lá, aquela bigoduda vendo papel de carta!” Ele ria com os outros, no começo em um tom de voz baixo, logo todos se contagiavam e começavam a rir mais alto, falavam, gritavam e riam. Dos meus óculos, do meu bigode do meu aparelho, de tudo o que eu tinha e que não tinha que ter, de tudo o que eu era e não tinha que ser. Logo, o Caio se multiplicava e os risos ecoavam no pátio do recreio. As meninas costumavam se calar sem-graça, ou disfarçar o riso quando me viam atônita, gaguejando baixo entre eles, uma plebéia feia entre os grandes reis da escola.
Eu tentava desesperadamente responder, tantas vezes respondia mentalmente, mas a voz não me saia pela boca. Eu gaguejava, balbuciava qualquer coisa em voz baixa, para que ninguém entendesse mesmo o que eu dizia, mas, quem sabe assim, pensariam que eu estava revidando e que eu era brava e corajosa como em meus sonhos lindos.
Pois não era. E não fui nunca, senão diante do espelho onde eu fazia caretas enquanto gritava para o Caio imaginário que via no meu reflexo, dizia que ele era gordo e sardento, e que eu o odiava. Fora de lá eu odiava apenas, como também só as crianças podem odiar, e o amava, por admirar nele aquilo tudo que eu queria ser: forte, brava, corajosa. Eu queria que, como ele, todos se calassem enquanto eu falasse e que todos me seguissem no que eu dissesse seja lá o que fosse.
Eu queria deixar de ser tola para ser o rei dos malandros, pular o muro para a turma de lá, fazer parte dos que falavam, dos que gritavam e reinavam. Esse meu desejo cresceu apertado dentro de mim, mas eu nunca me tornei o Caio que eu gostaria de ser. Tornei-me, no entanto, forte.
O que o Caio e os outros pequenos tiranos me ensinaram, foi que, embora eu nunca fosse capaz de revidar, também não morreria nunca dessa dor. Saber que a vida continuava e que meus pêlos cresciam a revelia de um mundo supostamente justo, fez-me forte. Criou em mim estrutura de ferro e cortinas espessas para que eu me isolasse do mundo sempre que fosse preciso. Passei a ouvir os gritos apenas nos primeiros segundos, porém conforme ficavam mais altos, iam desaparecendo da minha mente como se fosse uma música que estava se encerrando. As ofensas que tanto me doeram foram ficando baixinhas, baixinhas, silenciosas, até que se tornaram mudas. Os lábios dos meninos bradavam seus xingamentos, mas eu só os via se movendo e cuspindo. Não mais os escutava, não mais os deixava penetrar em meus ouvidos.
Assim, com o Caio e seus amigos foi que aprendi a me distanciar do mundo. Ainda hoje, quando preciso, torno a voz de alguém uma melodia baixa, que aos poucos vai ficando mais e mais silenciosa, até que suma de todo e eu tenha apenas a benção de um universo mudo ao meu redor.
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