Era de noite, uma terça-feira, ou talvez quarta. Eu chegara cansada, carregada de compras do super-mercado, enquanto trancava a porta. Foi instantâneo, eu apertei o interruptor e ela andou, rumo ao teto. Nos assustamos as duas. Eu com ela, ela comigo. Larguei tudo no chão, corri mais pra perto, ela andou de novo e eu corri pra longe. Esse tinha sido nosso primeiro encontro, um tanto quanto perturbador. Na mesma noite, bem tarde quando meu marido chegou, pedi que procurasse por ela e ele tentou, tirou umas caixas do lugar, olhou atrás do armário, em todas as frestas que existia, mas jurou de pé junto que não encontrou. Tudo bem amor, deixa pra lá. Nem era uma baratona, era média, daquelas marrons... Vai ver até que foi pela janela embora... Fingi que não ligava, que tinha esquecido o assunto. E até esqueci um pouco, com tanta coisa pra fazer. Mas não passaram-se dois dias, e a cena se repetiu. Eu já estava em casa há algumas horas, fui até a cozinha de pijama e pés no chão. Acendi a luz e pronto, ela correu. Estava na outra parede dessa vez, perto do fogão. Mas que malandra, eu pensei enquanto assistia a bichinha andar atrás da luva de silicone e entrar pela única fresta do armário. Olhei bem em volta, olhei o armário todo e vi que – sim – era mesmo a única fresta do armário e ela não titubeou. Ela mirou na fresta certa, não era coincidência. Meus pesadelos se confirmaram, aquela barata conhecia o percurso que fazia. Meu marido chegou logo e corri para alertá-lo:
- Amor, ela entrou naquele buraquinho ali, tá vendo? Aquele, do meio, e ela foi com um conhecimento de causa, com tanta prática, parece até que faz esse caminho todos os dias, parece que é o caminho dela pra casa, sabe? Deve fazer isso, todos os dias no final da noite. O expediente dela deve terminar junto com o meu, hoje ela bobeou um pouquinho, vai ver que parou na farmácia, ou no forno, e levou um pouquinho mais de tempo, acontece comigo as vezes, mas ela se deu mal, muito mal, porque eu cheguei bem na hora. E ela pegou aquele caminho amor, juro, como eu pego a Pacaembu, ela sabia que o caminho era aquele meu bem, ela sabe todas as linhas desses azulejos, querido, ela está dominando esse lugar! - Ele, meu doce maridinho, tentava me acalmar:
- Então, se você sabe que ela é como você, deveria ser mais compreensiva, ela pode ter tido algum problema – ele ironizou...
- Como eu?? A barata é como eu? É isso que você está me dizendo? Você está louco de dizer que a barata é como eu?
- Mas foi você quem disse!
- Amor, se você tem alguma coisa pra me dizer, pode dizer, pode me dar um feed-back, não precisa fazer essas comparações esdrúxulas, eu aceito críticas, agora, grosseria não, grosseria eu não vou aceitar, ta pensando o que?....
Ele tentava consertar, enquanto tirava uma caixa de cima do armário.
Eu, nos meus piores pesadelos, imaginava que ali estaria a casa dela, a família dela, de repente até algumas coisinhas que ela gostava de guardar. Fiquei atenta, paramos de discutir, fez-se um silêncio profundo na casa, enquanto o Bruno tentava ser delicado com o que poderia ser, afinal, o lar de alguém. Para minha surpresa não havia nada. Ele tirou outra, e outra. Pegou uma escada, ia me dando as caixas, panelas, tudo o que achava ali, mas não havia nenhum sinal da minha inquilina, nadinha. Batemos nas portas, pegamos vassouras, fizemos uma operação de guerra na casa, e nada da barata. Ele chegou a dar umas indiretas, insinuou que eu tinha tido uma alucinação, mas eu não ouvia nada, estava obcecada, só pensava na maldita barata marrom que conhecia tão bem a minha casa, mas tão bem, que conseguira achar um canto só dela, um lugar que eu mesma, eu que morava lá há tantos anos, nunca consegui achar.
A noite, antes de dormir, ainda olhei um pouco as paredes, procurei nos cantinhos na esperança de encontrá-la. Tentei até falar, baixinho mas tentei, porque pode ser que ela seja boa de ouvido, sei lá, os bichos costumam ter audição impressionante, mas, no caso das baratas, ou dessa em especial, não funcionou. Ela não apareceu e eu não mais a odiava. Talvez nem a matasse mais, eu estava admirando a maldita barata marrom. De repente, senti inveja dessa nojenta. Senti uma inveja danada porque ela foi do fogão ao armário, muito mais rápido do que eu vou da Sumaré à Pacaembu. E, o mais incrível de tudo, quando o mundo se mobilizou para localizá-la, ela se escondeu confortavelmente num buraco qualquer e, talvez, tenha até rido de nós e da nossa inabilidade com a casa que, inocentemente, julgávamos ser a nossa.
A barata, a proprietária do meu apartamento, nunca mais apareceu. Aquele foi nosso último encontro e eu nunca soube se ela se mudou, morreu, ou – o pior - continua a nos assistir, faceira, rindo de como somos tolos, enquanto nos achamos seres esperotos e racionais.
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1 comment:
clarice já dizia...
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