Saí lá, com essa aqui:
Quando etávamos distraídos
Não lembro quantos anos eu tinha, mas não era mais do que 10 ou 11. Estávamos voltando para casa, eu e meu irmão mais velho, de perua escolar, como nos era habitual. Também era comum sermos as crianças mais novas da perua, duas crianças entre adolescente grandes e exibidos. Mas isso não me incomodava, talvez eu sequer notara isso até aquela tarde de calor quando o fato se deu.
Estávamos sentados no nosso banco, no fim da perua, eu na janela e o Rafa, meu irmão, ao meu lado. As crianças maiores caminhavam e cantavam pelo corredor do ônibus enquanto eu assistia à paisagem do lado de fora. Foi através do nervosismo do meu irmão que decidi prestar atenção no que estava acontecendo. Ele fazia contas e mais contas com os dedos quando percebi que os meninos grandes estavam indo de cadeira em cadeira e, como comandantes do ônibus, perguntavam para cada criança quanto era 6 vezes 12 (ou qualquer coisa do tipo). Os pequenos, em seus lugares, erravam nervosos para alegria dos comandantes que gritavam eufóricos: “Não sabe, não sabe, vai ter que aprender, orelha de burro logo vai nascer”. Eu não lembro se as outras crianças ficavam tristes, choravam ou o quê. Mas lembro nitidamente dos olhos do meu irmão, apreensivos, que contava nos dedos quanto era 6 vezes o 12. Eu estava em silêncio, impressionada com a tensão do Rafa, quando ele me olhou e disse baixinho, mas muito firme: “Se alguém te perguntar alguma coisa, você fala 72 está bem?”. Eu, na minha ingênua distração, não entendi. “Quê, Rafa?”. “Kika, você fala 72, só isso tá? Se alguém te perguntar qualquer coisa, você fala 72 e pronto, não esquece, 72”. Então, querendo livrá-lo dessa dor, respondi que sim, que tudo bem, 72, 72, 72. Não sei o que veio em seguida. Desconfio que eles nos perguntaram e nós (eu ou o Rafa) respondemos certo, passando despercebidos pelos algozes do ônibus. Eu não tenho certeza, mas o que ficou para sempre cravado na minha memória foi a imagem do meu pequeno-grande irmão ali, tenso, contando nos dedos a resposta que nos livraria de um vexame, enquanto eu, absolutamente relaxada, notava as árvores e o tempo que passava do lado de fora do ônibus. Não sei como seria se eu estivesse sozinha. Talvez se me perguntassem, eu sequer notaria. Talvez se cantassem qualquer bobagem sobre mim, eu acharia que era o rádio ou, quem sabe, se eu estivesse sozinha hoje teria um trauma vexatório para contar, porque a verdade é que nunca, naquela idade, eu saberia quanto era 6 vezes 12 e nem nada do tipo. Mas, apesar disso, eu sabia me distrair, como sei até hoje.
Distraio-me com tanta facilidade que, dia desses, enquanto atravessava a rua sem muito cuidado, meu marido confessou que vive sempre preocupado comigo. Eu – distraída – perguntei por que, e ele respondeu, tentando ser delicado: “Ah, esse teu jeito meio tontinha...”. Eu sei o que ele quis dizer. Ele quis dizer que, depois de adultos, não há ninguém que nos salve da nossa distração. A distração é um benefício infantil, portanto deveria ser banida dos adultos, o que – definitivamente – não aconteceu comigo. Hoje não posso distrair-me, embora aconteça o tempo todo. E a vida fica perigosa quando mantemos a nossa distração infantil. Hoje, se você se distrai e esquece a bolsa na padaria, pronto, lá se foram seus documentos. Ou quando se distrai no trânsito então, lá vem um motoqueiro lembrar-te das suas obrigações. Não se pode esquecer de pagar uma conta, não nos é permitido distrair-nos com a lua cheia quando voltamos pra casa e até mesmo uma distraçãozinha básica, numa reunião importante, pode causar problemas seríssimos como já me aconteceu mais de uma vez.
Não sinto saudades da infância, em geral, mas a distração custa-nos tão caro que, por um instante, gostaria de ser criança de novo, apenas para perder-me um pouco no tempo que nos persegue, incessante, quando somos adultos e não há ninguém, ninguém que está sentado ao nosso lado na perua, fazendo as contas difíceis por mim.
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
5 comments:
Nossa, que texto lindo..por dois motivos, um pq eh simplesmente impressionante como os irmaos mais velhos, por mais crianças que seja, sabem que sao mais velhos e se preocupam em nos proteger..e dois, pq concordo, qdo adultos, qq distração custa caro e meu pai, como cansa estar ligada o tempo todo!!
Eu literalmente chorei com esse texto. Me fez lembrar de quando eu era criança, e tinha um irmão, que faria exatamente a mesma coisa para me proteger. Ele partiu, muito cedo, mas eu sempre choro quando algo me faz lembrar dele.
Eu sou aquela da foto sem cara, que segue seu blog. Suas cronicas sempre tocam e provocam minha alma; seja para rir, ou para chorar.
Obrigada por saber escrever tão leve e tão bonito.
Betsy
Belo texto!...E se eu tivesse um irmão tão especial quanto o teu, juro que não sairia da infância nunca!Votei pelo excelente.Parabéns.
Aninha, que lindo! Fiquei encantada com a preocupação do seu irmão: parecia uma cena de filme em que um adulto faz de tudo pra salvar a vida de alguém, mas com o detalhe que vcs eram crianças. E ele abriu mão da distração tão cedo...por amor...que lindo!!!
Beijocas doces cristalizadas!!! ;o*
Não tive irmãos mais velhos, mas fui eu a mais velha que fiz contas todos os dias para que elas não parecessem ridículas.
Elas cresceram, construíram suas vidas à revelia, sem qualquer constrangimento dos meus conselhos contrários. Riram, choraram, viveram! Continuam vivendo e se multiplicaram.
Não tive irmãos que fizessem as contas, sempre fui eu por mim mesma. Em alguns momentos tive "irmãos" bem mais velhos que seguraram minhas mãos, todos se foram. Fiquei novamente só com meus dedos para contar sozinha.
Acho que ainda busco um irmão mais velho que vá me dizer o resultado antecipado das contas que a vida oferece (talvez todos esperem). Mas a opção que sempre me sobra é a de ser eu quem faça as contas para os outros. Dizem que é sina.
Adorei a crônica quando a li no Cronica do Dia e, também, a que foi escrita "a quatro mãos".
Beijos
Post a Comment