Diretamente da crônica do dia
Existe alguém aqui dentro. Logo aqui, dentro de mim, alguém que está contra mim. Não sei quem é, não sei bem o que quer, mas existe alguém aqui que está boicotando tudo. Falo baixo para não acordá-lo, ando na ponta dos pés, principalmente se estou feliz, porque ele – ou será ela? – esse ser que habita em mim, não pode ver uma idéia boa, um sorriso tonto, que logo vem atrapalhar tudo.
É o inimigo. Ah você achou que não tinha inimigos? Que caso fosse assassinada, um dia, sua vizinha de porta apareceria pesarosa no Jornal Nacional: “Nossa, mas ela não tinha inimigos...” Pois você tem, bem aí, dentro de você. E é melhor conhecê-lo do que deixá-lo assim, agindo à própria sorte. Talvez o seu tenha aparições mais sutis, pode ser que ele use pantufas e seja um gentleman, chega, sai e você nem percebe. Mas sabe quando você vai falar uma coisa numa reunião importante, e a palavra lhe some dos lábios? Ou nem precisa ser uma ocasião especial, quando você está batendo papo com um amigo e vai falar daquele filme, ai aquele, claro que você sabe, com aquela atriz, meu Deus, ai que aflição, aquele, tá na ponta da língua, aquele lá, sabe? Não. Mas sei quem foi que roubou. Foi ele, o inimigo. É um ladrão, o danado.
O inimigo chega quando você acha que está dominando. A mim ele vem sempre diante de uma tela branca. Impressionante. Eu tenho mil idéias, textos prontíssimos na mente, era só ditar para as minhas mãos e estariam prontos. Mas, bastou a tela vazia aqui, a me olhar, que o inimigo veio e roubou tudo. Fiquei de mãos — cabeça e tela — vazias. Mas eu tinha acabado de pensar uma idéia boa...
O que mais me impressiona nesse sujeito é a rapidez. Ele é tão veloz que você pode saber uma coisa num minuto e, no instante seguinte, ele terá levado de você. Mas como? Estava aqui agora mesmo? Você dirá, como se diante de uma vaga vazia onde você estacionara seu carro pela manhã. Roubaram, claro. Alguém toma a conclusão de você.
Imagino que o inimigo fique escondido, observando tudo à espreita e, quando vê que as coisas estão bem, surge com seu movimento derradeiro, tirando tudo de esquadro. Às vezes leva-se dias para entender um acontecimento. Mas é quando esse acontecimento faz sentido, é quando estamos com a pele queimada de sol, pra cima, positivos e confiantes, que ele — atrevido — aparece. Logo uma onda de desânimo nos pega, talvez até uma gripe, ou, se ele estiver num dia bom, só uma dúvida, uma pequena duvidazinha que pergunta, tal qual um pernilongo zumbindo no seu ouvido: “Sou mesmo capaz? Consigo mesmo fazer isso?”. Ah, mas você já sabia agora há pouco, por que não trancou as portas? Porque não fechou os vidros, ele entrou afinal...
Sempre se trata de algo que você já tinha. Uma palavra, uma certeza, uma blusa que você tinha planejado usar bem hoje, ou mesmo uma presilha de cabelo que some, sem explicação. Pode saber, foi ele.
Ele quer o que temos, ele quer aquilo que conquistamos — a duras penas — quanto mais difícil foi conseguir, mais o inimigo tentará levar de você. Há quem o evite, alguns mais firmes conseguem rejeitá-lo muitas vezes. Eu ainda apanho do meu inimigo. Porque, de certa forma, cuido dele. Trato-o não com raiva, mas como garoto peralta que gosta de fazer macaquices. É um saci, meu inimigo, e, talvez por isso, tão impertinente. Se eu tratasse à altura, como um inimigo sombrio e forte, talvez ele não tivesse — por exemplo — levado o final desse texto, uma frase prontinha e bem amarradinha que eu tinha aqui, agorinha, na ponta da língua... Viram? Correndo ali na esquina? Foi ele, bandido!
1 comment:
Oi Ana, que bom que vc gostou da crônica! Depois me conta o que vc achou do livro! Beijos!
P.S. Acabei de visitar (e passar um tempão em) todos os seus blogs, adorei!
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