Saturday, March 14, 2009

O alfaiate



Mas um texto da Crônica do dia do ano passado, que esqueci de trazer pra cá. Onde eu estava com a cabeça, o ano passado?

Me deparei outro dia com a imagem acima, e tive um instante de susto. Eu sabia da história, mas nunca tinha me dado conta dela. Eu sabia que um homem, um humilde alfaiate austríaco em 1919, achou que seria capaz de voar e criou o seu próprio aparato para isso. Vestiu-se, como quem veste seu melhor terno e foi para o alto da Torre Eiffel. Subiu a torre, cheio de coragem e força, chegou ao topo, olhou para baixo, titubeou, respirou, pensou, andou um pouquinho para o lado, talvez até tenha cogitado desistir, mas, quem sabe pela multidão que o assistia lá de baixo, ou quem sabe pela própria fé, inventou de não desistir e saltou. Saltou do alto da torre Eiffel achando que iria voar. Ele acreditou, piamente, que iria pairar sobre aqueles que o assistiam, deve ter se imaginando voando, batendo os braços tal qual um pássaro, enquanto a platéia o aplaudiria.

Ah, quanta fé... Quanta coragem e — ao mesmo tempo — quanta ingenuidade. É quase uma criança o senhor alfaiate. Só a infância e a paixão nos permitem essa esperança insana de um suicídio. É um apaixonado, um homem e um menino, um humano que não se sabe humano, um humano que, ao contrario de nós mortais, se crê Deus. O alfaiate me despertou uma espécie de inveja, uma compaixão misturada com encantamento.

Quantas vezes me vi diante do abismo e desejei saltar? Quantas vezes senti que precisaria de um pouco mais de fé para enfrentar uma situação e, no entanto, recuei? Quantas vezes me paramentei de força e coragem, me preparei e desejei ardentemente um vôo baixo, nem precisava ser tão arriscado quanto o do alfaiate, mas, ao me ver humana e falível, desisti com medo do erro, do fracasso, da humilhação.

Para o alfaiate, a queda era pior do que uma humilhação. A queda era a morte. Errar não causaria apenas o desconforto e a falta de jeito que causaria a mim. Errar para o alfaiate representaria o fim das chances, das possibilidades de acertos e — inclusive — de novos erros.

Ainda assim ele saltou. Ainda assim o alfaiate se arriscou. Talvez preferisse a morte ao vexame que seria a falta de aplausos, a crítica e a crueldade alheia. Talvez... Mas não lhe foi perguntado. Ninguém tentou lhe tirar dali, ninguém lhe puxou pelo braço e disse: “Ei, meu amigo, venha cá. Vamos conversar, isso pode não dar certo...” Não... Uma multidão assistiu ao sonho desse homem. Várias pessoas, como eu, você, nossos pais, assistiam àquela tragédia em forma de poesia. É uma poesia torta, um sonho encantado e cheio de sangue, a doçura tonta do alfaiate.

Eu o invejo, sim. Todos os dias em que meus pés rateiam diante do desconhecido. Eu o invejo sempre que sinto minhas pernas bambas ao caminhar para o novo, ou quando minha voz não sai por medo de ser tola. A vida se fez tão cheia de regras e obrigações que não vejo espaço para essa esperança tão fora de propósito e irracional do alfaiate. Talvez por isso eu não consiga deixar de invejá-lo, ao menos um pouco. Porque ele deve ter sido o último tolo corajoso que já existiu. Tolo, corajoso e determinado, como eu quis ser tantas vezes, mesmo que depois me estatelasse no chão como, aliás, aconteceu com o pobre alfaiate.

2 comments:

Carla S.M. said...

Fantástico texto. Desconhecia a história e me encantei com sua forma de contá-la.

Anonymous said...

Texto excelente! Eu conhecia a história desse humilde alfaiate e adorei sua crônica.